segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

Os múltiplos furacões que estão varrendo o “American Dream” do mapa - Miguel Nicolelis

 15/12/2024 às 06:00

Foto - AFP

https://www.cnnbrasil.com.br/colunas/miguel-nicolelis/internacional/os-multiplos-furacoes-que-estao-varrendo-o-american-dream-do-mapa/

No dia 20 de fevereiro de 2025 eu estarei celebrando 36 anos da minha chegada aos EUA. Muita coisa mudou no país que me acolheu e permitiu que eu realizasse todas as minhas aventuras científicas nestas quase quatro décadas.

De fato, durante uma recente visita a San Francisco, na Califórnia, eu finalmente me dei conta que o país que eu encontrei em 1989 simplesmente não existe mais. Tal constatação não é minha apenas, mas reflete o pensamento de muitos colegas que, como eu, também chegaram ao país no final da década de 1980, atraídos pelas condições incomparáveis para se fazer ciência de ponta, bem como a abertura para que jovens cientistas estrangeiros pudessem exercer seus talentos em pé de igualdade com americanos natos.

As chagas e cicatrizes desta mudança dramática no modo de vida americano ocorrida nestes 40 anos não poderia ter ficado mais clara do que num tour pelo centro de San Francisco, em busca de um pronto-socorro que pudesse me atender devido a uma emergência médica.

Enquanto um motorista de táxi que não falava uma palavra de inglês tentava encontrar o hospital que se prontificou a aceitar o meu seguro privado de saúde – condição essencial para ser atendido – , do banco de trás eu constatava consternado o grau de devastação, miséria humana e degradação do coração e alma de uma das cidades mais icônicas do país.

Ao longo do trajeto, eu observei um enorme número de pessoas em condição de rua, vivendo em condições abjetas, muitas transformadas em verdadeiros zumbis de corpos contorcidos, dada uma epidemia de abuso de drogas fora de qualquer controle, que tem como um dos destaques o opiáceo sintético (fentanil) de preço muito baixo e que em 2023, apesar de uma baixa significativa, ainda causou pelo menos 653 mortes por overdose na cidade.

Em todo país, segundo o National Center for Health Statistics do Central for Disease Control and Prevention, das quase 108 mil mortes por overdose no país em 2023, 81 mil foram causadas por consumo de opióides, principalmente do fentanil.

Tristemente, as cenas que eu testemunhei in loco em nada diferiram de um tour semelhante realizado, apenas alguns meses atrás, pelo centro de São Paulo. Mas aqui estava eu, no centro de uma grande metrópole americana cujo PIB – considerando-se o núcleo econômico formado por San José, San Francisco e Oakland – ultrapassou US$ 1 trilhão em 2019, definindo a terceira maior economia dos EUA e quase metade do PIB brasileiro de 2023.

Anos atrás, a população de San Francisco foi convencida pelas lideranças da cidade que ao oferecer atraentes benefícios para que empresas de alta-tecnologia se mudassem para a cidade, benefícios estes totalmente subsidiados pelos contribuintes da cidade, seria possível implementar um ambicioso processo de revitalização do seu centro. Claramente, nada disso ocorreu.

Apesar de obter isenções fiscais e toda sorte de outros benefícios, a atração dos diferentes empreendimentos dos Overlords das BigTechs além de enriquecê-los não trouxeram qualquer tipo de melhora da condição de vida dos habitantes mais vulneráveis de San Francisco. Muito pelo contrário.


Com a inflação dos custos de moradia, eliminação de empregos e crise crônica do financiamento da rede de escolas públicas da cidade, San Francisco hoje encapsula todas as crises que tem assolado os EUA nas últimas décadas. Uma crise profunda que tem levado os jovens americanos a acreditar piamente que eles jamais conseguirão atingir a mesma qualidade de vida dos seus pais e, em última análise, se transformarem na primeira geração de americanos, após a Segunda Guerra Mundial, que terá seu acesso ao famoso “American Dream” bloqueado de forma categórica.

Se todo o espetáculo dantesco do trajeto até o hospital não fosse suficiente, a minha epopeia californiana rapidamente ganhou contornos dramáticos quando eu fui informado por uma médica do pronto-socorro que, infelizmente, não havia nenhum oftalmologista disponível que pudesse me atender e verificar se a infecção que havia sido diagnosticada havia afetado de qualquer forma o meu olho esquerdo.

Uma rápida consulta com a minha assistente de longa data na Carolina do Norte, a incomparável Susan Halkiotis, revelou que nem mesmo na cidade onde eu resido há 30 anos, e mesmo no hospital da universidade – uma das maiores do país – onde trabalhei por 28 destes anos, eu também não conseguiria uma consulta com um oftalmologista, uma vez que a espera média para tal consulta era de 5-8 semanas!

Confrontado com esta situação surreal, confinado num quarto de hotel do estado mais rico do país que mais investe em saúde no mundo, algo em torno de US$ 4,8 trilhões apenas em 2023 (mais de 2 vezes o PIB brasileiro), mas que não possui um sistema de saúde público universal, algo como o SUS brasileiro, eu tomei a única decisão que me restava: ligar para o consultório do meu colega de turma, um dos maiores oftalmologistas do Brasil, Dr. Samir Bechara.

Informado que meu amigo estava passando férias na Espanha, eu por um momento quase entrei em desespero. Pois bem, minutos depois, eis que o meu telefone toca e, diretamente de um povoado no caminho de Compostela, lá estava ele, o meu grande amigo Samir, imediatamente se disponibilizando para realizar uma consulta on-line e basicamente resolver a minha angústia em poucos minutos.

Da mesma forma que o grande Samir, que realizou várias destas consultas on-line nos dias subsequentes, a minha querida dermatologista, Dra. Sandra Tuma, me monitorou desde o início dos sintomas, até meu regresso ao Brasil. Com eles, a minha maga clínica, Dra. Naira Hojaij, assumiu toda a minha supervisão clínica de forma remota, até meu retorno a São Paulo e depois dele.

Sem a instantânea solidariedade, empatia, e profissionalismo fora do esquadro destes três maravilhosos médicos brasileiros eu estaria literalmente a Deus dará.

Poucas semanas depois deste incidente, que ilustra claramente a decadência americana em questões absolutamente primordiais, como saúde pública, uma pequena maioria de americanos – uma das mais baixas de toda a história das eleições presidenciais do país – elegeu um candidato que baseou sua campanha em hostilizar de forma grotesca os imigrantes e toda sorte de valores humanísticos que nos idos de 1989 permitiram que eu e outros cientistas escolhessem os EUA para desenvolver a nossa arte.

Eleito com o apoio financeiro explícito de um dos mais controversos Overlords das BigTechs, que passou a usar a rede social de sua propriedade como uma poderosa arma eleitoral, Donald Trump começou a indicar indivíduos totalmente desqualificados – alguns deles sob investigação por crimes cometidos enquanto membros do Congresso – para cargos do alto escalão do seu futuro gabinete, para total choque de parte da sociedade americana não infectada pelo vírus informacional de ódio e ressentimento que capitaneou a vitória do candidato do Partido Republicano.

Tudo isso num país com inflação anual de 2.3% e um dos maiores crescimentos econômicos do pós-pandemia. Mas nada disso realmente importa no mundo da pós-verdade.

Longe de defender as práticas e carreira da candidata do Partido Democrata, eu interpretei a eleição de um populista, condenado múltiplas vezes pela justiça estadual de Nova York, que tentou subverter ilegalmente os resultados das eleições de 2020, resultando numa invasão violenta sem precedentes de seus seguidores ao Congresso americano, como um sinal claro que os verdadeiros furacões que estão varrendo do mapa o “American Dream” são ainda mais devastadores do que aqueles gerados no Golfo do México ou no Oceano Atlântico.


Apesar de toda destruição e perdas humanas deixadas ao longo do seus rastros, nem de longe estes fenômenos climáticos, decorrentes do aquecimento global – ignorado por boa parte dos americanos e seus políticos – , se comparam ao grau das ameaças criadas pela erosão dos valores éticos e humanísticos do Iluminismo que assola não só a sociedade americana, como do resto do mundo, incluindo, evidentemente, o nosso querido patropi.

As consequências devastadoras da divisão profunda que caracteriza o presente processo de tribalização de boa parte, senão da totalidade, das sociedades humanas ao redor do planeta, é a base de uma crise existencial nunca antes enfrentada pela nossa espécie. Eu digo isso porque este processo tende a reverter, de forma drástica, toda a receita de sucesso que permitiu ao Homo [not so] sapiens sobreviver às inúmeras intempéries geradas por um Universo e um planeta em contínuo fluxo.

Difícil prever o que o futuro nos reserva como resultado do nosso completo abandono de tudo aquilo que nos permitiu chegar até aqui.

Quem viver, verá!

P.S. Recebi semana passada a conta da minha consulta de 10 minutos no Pronto Socorro em San Francisco: mais de US$ 1.200 (sem nenhum procedimento ou medicação envolvidos) dos quais eu tive que cobrir do meu bolso US$ 250, mesmo tendo seguro de saúde. Este pequeno exemplo ilustra porque não é à toa que 500 mil americanos por ano declaram falência pessoal por não conseguirem pagar seus gastos com saúde!

Miguel Nicolelis

NeuromIcientista e escritor. Professor Emérito de Neurobiologia, Duke University. Fundador Instituto Nicolelis de Estudos Avançados do Cérebro da ASSDAP.


Ouviu falar no Luigi Mangione? Se respondeu “Nunca nem vi”, eu vou ter que perguntar, com muito espanto, em que mundo você mora?


O  jovem estadunidense de 26 anos, criado numa abastada família de origem italiana, matou o bilionário Brian Thompson, CEO da maior seguradora de planos de saúde dos EUA, a UnitedHealthCare.


Pra quem não sabe, os EUA não tem sistema público de saúde. Portanto, todo e qualquer serviço de atendimento médico lá tem altos custos que, não raro, viram uma bola de neve impossível de pagar. Um transporte em ambulância, por exemplo, pode variar de assustadores R$ 3.000,00 a R$ 21.000,00 na cotação atual.


“Mas, Ana Paula, por que você tá falando sobre isso? O Brasil tem o SUS e esse assassinato aí foi na gringa”. Então, a discussão sobre o acesso – e a falta de acesso – à saúde tomou a internet não só nos EUA, mas no mundo todo. Pra se ter uma ideia, os colegas de prisão de Mangione tiveram espaço numa transmissão ao vivo de um jornal dos Estados Unidos e gritaram por sua liberdade.


Que as operadoras de planos de saúde são predatórias por natureza, não é novidade. Em 2018, o programa Greg News abordou o tema de forma muito didática. Grosso modo, eu poderia resumir em uma sentença: planos de saúde são sobre maximizar os ganhos à custa da vida de seus clientes, pois elas só lucram se não prestarem os serviços pelos quais as pessoas pagam. Como esquecer do lema da operadora de saúde Prevent Senior, “Óbito também é alta”? Agora imagina essa lógica aplicada à administração de todo um estado...


Pois bem, antes de entrar pra a política, o governador de Sergipe, Fábio Mitidieri (PSD), administrou a Plamed, plano de assistência médica fundado há mais de 40 anos por sua família. Em 2019, a empresa foi avaliada em R$ 57,5 milhões durante tratativas para aquisição pela Hapvida.


A Mangue Jornalismo tem se dedicado a investigar a degradação de sistemas públicos em Sergipe, caso do Ipes Saúde, que sofre com os movimentos privatistas de Mitidieri. Quer que cavemos mais fundo? Considere fazer uma doação de qualquer valor pra o único jornalismo realmente independente e investigativo em Sergipe. Caso possa, assine um dos planos mensais ou anuais da Mangue (para saber mais, clique aqui).

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Depois de ler o texto acima, considere duas atitudes importantes .  1 - Cooperar financeiramente com o jornalismo independente e investigativo da Mangue, 2 - Fazer melhores escolhas para o parlamento e para o executivo, Neste caso se não ajudar a resolver, pode pelo menos não deixar piorar., Pois como estamos vendo com relação as chantagens do centrão contra o governo Lula, não há como o Brasil ter futuro. Mesmo que você seja o melhor prefeito, o melhor governador ou o melhor presidente que haveremos de ter..

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