quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

Cannabrava | Dos Cadernos do Terceiro Mundo à Diálogos do Sul Global

A Diálogos do Sul Global nasceu para levar adiante a missão da Cadernos do Terceiro Mundo: retratar um mundo em transformação e as lutas por libertação a partir dos olhos do Sul Global

1973, reunião de cúpula dos países não alinhados em Argel, capital de uma Argélia em que ainda se respiravam ares revolucionários, da prolongada luta pela independência conseguida com muito suor e sangue em 1962. 

Eu trabalhava no matutino Expresso, jornal expropriado da oligarquia financeira e dirigido pela cooperativa dos trabalhadores, e estava como um agregado informal da delegação peruana, encabeçada pelo primeiro-ministro, general Edgar Mercado Jarin, e pelo ministro de Relações Exteriores, general Miguel Angel de la Flor.

Pela primeira vez, numa reunião de cúpula das Nações Unidas, participavam os dirigentes dos movimentos de libertação dos países em luta pela independência das metrópoles coloniais. 

Foram muitas as primeiras vezes. 

Os países produtores de petróleo, liderados pela Arábia Saudita, estatizaram os poços e puseram seus preços. Foi um transtorno na economia em quase todo o mundo, principalmente nos países dependentes do petróleo importado, como o Brasil, por exemplo. 

Em pleno transcorrer da conferência, ocorreu o 11 de setembro no Chile, o golpe contra o governo de Unidade Popular de Salvador Allende (1970-1973) e a instauração de uma ditadura militar sanguinária que durou quase duas décadas, de 1973 a 1990.

Neiva Moreira

Em Argel, encontrei-me com Neiva Moreira (1017-2012), estava como enviado por um jornal de Montevidéu. Foi muito bom, passamos a nos apoiar mutuamente.

Logo tratamos de nos enturmar com os delegados dos movimentos de libertação Paigc (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde), Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique) e Mpla (Movimento Popular de Libertação de Angola), além dos palestinos da Organização para Libertação da Palestina (OLP). Falávamos quase que o mesmo idioma.

A gente estava vendo um mundo que não era retratado pela mídia hegemônica, dominada por oligarquias familiares e retratando o mundo visto pelas agências de notícias de países coloniais e imperialistas, a Reuters, do Reino Unidos, France-Presse (AFP), da França, AP e UPI, dos Estados Unidos, principalmente essas duas últimas.

Havia uma revista na França, Afrique-Asie, mas não satisfazia porque era muito intelectualizada. A gente entendia que era necessário um meio que olhasse o mundo com olhos de jornalista, jornalista comprometido com as lutas de libertação, jornalistas anti-imperialistas, e que circulasse no Terceiro Mundo.

Cuadernos del Tercer Mundo

Como mostrar esse mundo em transformação? Buscando respostas, surgiu a ideia de que era necessário um meio de comunicação dedicado a isso. Neiva Moreira, imbuído de entusiasmo, conseguiria materializar a ideia com o projeto de Cuadernos del Tercer Mundo, com Júlia Constanza, Pablo Piacentini, Beatriz Bissio. 

Desde que surgiu em Buenos Aires, notadamente a partir do México, onde no auge a Cadernos tinha três edições, em inglês, espanhol e português, eu me sentia umbilicalmente ligado à revista. Onde eu estava era como representante e colaborava com textos na medida do possível, pois trabalhando em imprensa diária não tinha muito tempo disponível. Entre os trabalhos que fiz vale destacar Panamá, o Vietnã de Carter, uma reportagem quase completa sobre a luta de libertação do povo panamenho para recuperar a soberania sobre seu território, luta vitoriosa liderada pelo general Omar Torrijos Herrera.

No Brasil, a partir de 1980, numa primeira fase nos dedicamos a promover a revista nos meios universitários e a vender assinaturas. Vendemos muitas assinaturas, e fizemos vários eventos — palestras, seminários — nos campi universitários. Numa outra etapa, eu tive que me dedicar em tempo integral a tocar uma empresa de assessoria e produção de produtos de comunicação, não sobrando tempo para dedicar-me à revista. Não obstante, o cordão umbilical jamais foi cortado. 

Decretar o fim da revista foi traumático para todos os direta ou indiretamente envolvidos no projeto. Alea Jacta est. Foram realizadas várias reuniões, na casa de Beatriz ou no escritório do Beco de Bragança, para dialogar sobre o que fazer para preencher o vazio deixado pela Cadernos. 

Refazer a revista nos parecia a todos impossível pelos custos de produção e distribuição. Surgiu então a ideia de se criar um espaço cultural dedicado a discutir o mundo com os olhos do terceiro mundo e, na medida do possível, recriar a revista em formato digital.

A primeira constatação foi a de que o Terceiro Mundo como conceito já estava superado, que o que se impunha agora como conceito era o de um Sul insurgente contra um Norte que sobrevivia da exploração desse Sul em todos os aspectos, dominando econômica e culturalmente e a exigir libertação.

De Espaço Cultural à Diálogos do Sul Global

Cristalizou-se a ideia do Espaço Cultural Diálogos do Sul, que chegou a ser formalizado com a aprovação de Estatutos e diretoria, mas que nunca chegou a sair do papel. As circunstâncias inviabilizaram o projeto de uma ONG, mas deixou a semente de se criar uma revista virtual e assim, já com uma inteira década de existência, surgiu a revista virtual multimídia Diálogos do Sul, hoje Diálogos do Sul Global.

A evolução do nome Diálogos do Sul para Diálogos do Sul Global correspondeu à evolução do conceito de Sul, que não é um Sul geográfico, mas geopolítico e portanto Global.

Confira a seguir a participação de Paulo Cannabrava Filho na conferência “Jornalismo e democracia. Revista Cadernos do Terceiro Mundo – 50 anos: História e legado” e, a seguir, outras transmissão do evento:

O Norte geopolítico é conformado por Reino Unido, Japão, Austrália e Coreia do Sul, e liderado pelos Estados Unidos, em que vigora o neoliberalismo e se sustenta da exploração dos recursos naturais e da mais-valia dos países do Sul Global. O Norte são os países da Otan, hoje uma Otan Global com seus satélites e bases militares, aqueles países que irradiam o neoliberalismo e neocolonialismo e as guerras de conquista.

O Sul Global são os países insurgentes contra a dominação e exploração desse Norte. Esse é o conceito sob o qual se organizaram os Brics, sob a liderança da Rússia e da China, que juntas configuram o maior poder bélico e econômico do mundo.

Naquela época, década de 1970, dois terços da humanidade estavam a contestar o sistema de dominação dos países colonialistas e imperialistas hegemonizado pelos Estados Unidos, mais apropriadamente se poderia dizer anglo-saxão, pois a Inglaterra esteve sempre na liderança desse jogo.

Isso de um lado. De outro lado, os países em desenvolvimento, o Terceiro Mundo organizado no Movimento dos Países Não Alinhados;  os países socialistas, liderados pela URSS, solidários apoiando os países que se insurgiam contra a dominação.  Os movimentos de libertação nacional na Ásia, na África e no Oriente Médio, na América Latina. Na Nossa América, havia guerrilhas por toda parte: Guatemala, Nicarágua, El Salvador, Venezuela, Peru, Bolívia, Argentina, Uruguai, Brasil, inspirados pela vitoriosa Revolução Cubana.

Hoje, de novo podemos dizer que dois terços da humanidade estão a contestar o sistema de dominação configurado no Norte Global e confrontado pelo Sul Global. De um lado, países neocolonialistas e imperialistas, hegemonizados pelo imperialismo dos Estados Unidos. De outro lado, os países em desenvolvimento que se insurgem contra a dominação e cuja expressão organizada está nos Brics.

Hoje não temos mais os países socialistas, mas temos a China e a Rússia, juntas em uma aliança estratégica sem limites, liderando a construção de um mundo multipolar, solidário e com projetos de desenvolvimento e cooperação entre os Estados para enfrentar os desafios. O maior dos desafios? O combate à fome, à desigualdade, ao subdesenvolvimento. A luta que deve unir a todos é pela libertação nacional.

O povo merece a verdade

Outro desafio é como fazer chegar a verdade ao povo. 

Essa verdade de um mundo em transformação não aparece na mídia hegemônica. O controle dos meios de comunicação segue em mãos de oligarquias, porém, sob o controle do capital financeiro que impôs o pensamento único e o projeto de gestão da economia pela cartilha do Consenso de Washington. Livrar-se do pensamento único, voltar a olhar crítica e criativamente a realidade, eis a questão crucial do momento atual.

Dizem muitos observadores da cena mundial que estamos ao borde de uma terceira guerra e que será nuclear, pondo em risco de extermínio a própria humanidade. É simplesmente apavorante.

De fato corremos também o risco de os Estados Unidos virem a ser governados por um louco, com consequências imprevisíveis. Sobre isso, ganhe quem ganhe a eleição nos Estados Unidos, nada mudará, serão os loucos do complexo militar-industrial e do sistema financeiro que continuarão mandando. E o mundo continuará em guerra.

Guerra econômica com o imperialismo a decretar bloqueios, sanções a países que contrariam seus interesses, como Coreia do Norte, Líbano, Irã, Síria, Rússia e China, Venezuela, Nicarágua e Cuba. Guerra hibrida, lawfare, guerra cibernética, todas as guerras para perpetuar a dominação imperial, manter submissos os governos.

Ao obrigar a Europa a bloquear e sancionar a Federação Russa, agravou a crise sistêmica advinda do neoliberalismo. Desindustrialização, desnacionalização, desregulamentação, desemprego, agravado pela falta de energia e alimentação baratas originárias da Rússia. 

Se olharmos o que aconteceu no mundo após Ialta e Potsdam, a gente se dá conta de que a 2ª Guerra não acabou. Aproveitando-se da debilidade em que a Europa se encontrava, os Estados Unidos iniciaram uma guerra cultural e econômica, além de militar, para dominar o continente.


Paulo Cannabrava FilhoIniciou a carreira como repórter no jornal O Tempo, em 1957. Quatro anos depois, integrou a primeira equipe de correspondentes da Agência Prensa Latina. Hoje dirige a revista eletrônica Diálogos do Sul, inspirada no projeto Cadernos do Terceiro Mundo.
Abaixo, além de texto assista a diversos vídeos com a transmissão do seminário sobre os 50 anos de   Cadernos do Terceiro Mundo.

https://dialogosdosul.operamundi.uol.com.br/cannabrava-dos-cadernos-do-terceiro-mundo-a-dialogos-do-sul-global/

Para acessar as edições digitalizadas de cadernos do terceiro mundo.

https://rima.ufrrj.br/jspui/handle/20.500.14407/211

Cadernos do Terceiro Mundo no Instagram

https://www.instagram.com/cadernosdoterceiromundo/

A crise da política e a do jornalismo

Por três séculos, a mídia atuou num espaço paralelo e complementar ao da democracia liberal, assumindo também suas distorções. E agora, quando este regime político está desabando por dentro, e sob pressão exterior? 

Para aprofundar a compreensão de nosso momento histórico, vamos conversar com um jornalista que participou pessoalmente de diversos processos políticos emancipatórios na América Latina, além de carregar a experiência de repórter e editor em grandes veículos da imprensa brasileira.  

Paulo Cannabrava é jornalista, diretor dos Diálogos do Sul, criador dos Cadernos do Terceiro Mundo, e concede entrevista a Antonio Martins e Maurício Ayer. 


Lembro de cadernos do terceiro mundo, já aos dezoito anos, quase ao final da década de 1970.

Uma das melhores publicações que tínhamos  contato da chamada imprensa alternativa ou independente, em tempos de  dependência das agências internacionais tendenciosas e dos correspondentes internacionais dos jornalões. Mas sem a cobertura mais a fundo e a quente dos cadernos do terceiro mundo, mesmo com a demora para publicação das reportagens e análises, posto que a revista era mensal.  

Zezito de Oliveira

Como era o modelo de negócios que deu sustentação aos cadernos do terceiro mundo e o que levou a crise de esgotamento desse modelo causando o fim da publicação ? E não é um paradoxo,  os governos democráticos e os grandes sindicatos no Brasil pós 1985 ,não terem contribuído com  publicidade substancial a fim de colaborar na sustentabilidade de publicações como os cadernos?

A pergunta acima não foi respondida a contento, talvez por conta das escolhas do entrevistado para  fazer uma abordagem que não precisasse se deter em uma questão complexa e que mereceria mais tempo e mais esforço mental, além dos melindres politicos envolvidos na resposta. Mesmo assim a entrevista foi muito boa e o problema colocado acima bem que merece um estudo acadêmico mais aprofundado.

Por outro lado, o modelo de negócios aplicado a época era muito de militância e de relações de parceria baseados em ligações politica-ideológica históricas, e ficava ao sabor de quem ocupava os principais cargos de decisão nos executivos. Uma fonte de informação para testar essa hipótese pode ser a quantidade de anúncio governamental do governo do Rio de Janeiro, quando Brizola  foi governador (1983 a 1987 e 1991 a 1994), tanto na cadernos do terceiro mundo como em outras publicações da imprensa alternativa.


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